quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O Infortúnio


Arrepender-se de um ato é alterar o passado.
Oscar Wilde: De Profundis
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Na manhã de trinta e um de março de um ano qualquer, ano por muitos (saibamos) jamais esquecido, numa lúgubre palhoça à beira da estrada de São Serraro, Baixa Santana do Sul, um homem, cujas mãos ainda violadas mal se mexiam pelo incessante e exaustivo dia anterior, sonhou encontrar-se em um extenso milharal. Sonhou atear fogo em poucas de suas pequenas porções contornando a si próprio. Do céu a ferrugem se escorria, impondo-o, como jamais houvera imposto, sua dor. O fogo se alastrava, merecendo-o. Ao seu redor, com todo o tremor possível, por todos os lados o medo sem volta. Não havia tempo; não haveria mais tempo; qualquer recuo por mais instintivo que o fosse só estaria a condená-lo ainda mais depressa. Seu pavor solitário convertera-se numa leoa contendo mil dentes, agora, em um gigantesco círculo, pensou: “Meus próximos instantes serão infinitos”. Sentiu secar-lhe a garganta quando espremeu-no, impiedosamente, a incandescente língua de ferro. Não pôde pensar em mais nada. Em chamas até os últimos e breves clarões da memória se contorciam. Remexia-se como a che-gada da impostergável hora de um cisne. Debatia-se como quem só agora pudesse compreender o vazio, visto sermos meros raciocínios ambulantes. Agitou corpo e membros sem esperança. Congelou-se em meio ao turbilhão vermelho que o ignorava; sem alma, aniquilado. Em sua inconformada face, um líqüido (talvez lágrimas) entranhava-se por entre calcinados cristais de terra. Teria sido encontrado após quatro longas noites de inverno. Nessa altura, despertou.

Em fins do século XIX, próximo ao Riacho dos Massetes, Domingues, obstinado, mescla à água fervida muitas medidas de um mate que em tempos remotos pertencera aos fugitivos negros, e que agora serve para acalmar aos brancos e pardos. Sua verdadeira identidade é para todos daquela região um segredo, bem como sua origem. Mas ninguém ignora que já há muitos dias, aos entardeceres; com um olhar empoeirado pelo tempo a tragar o seu cimarrón, observa atenciosamente toda porção sul da primitiva paisagem.

Tarefa honrosa a de um espectador que se vê obrigado a crer na impossibilidade, sobretudo ao que de antemão possa (aos olhos) parecer-lhe impossível. Aos que agora podem distinguir entre esses dois homens, quero contar o destino de ambos, e intercalá-los até o momento de suas sortes, algo que ainda hei de inteirar-lhes do motivo de se encontrarem juntos nos confins de um certo subúrbio de um peremptório país. O caso se passa em dias de Março de 1896. O relato sugere destreza, mas duvido não poder contá-lo rapidamente.

Sendo assim, parto de um seguinte documento oficial da época:

“A 15 de Outubro do anno findo, em obediência à ordem já referida, promptamente satisfiz a requizição, feita pelo Dr. Alípio Mello, de uma força de ceem praças da guarnição para ir bater aos 16 dias de Março do anno vindouro fanáticos de um arraial, asseverando-me que, para tal fim, era aquelle número mais que sufficiente.”

Confiado no inteiro conhecimento da causa,
Tenente Domingues Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria

Anota Spinoza em uma de suas mais belas obras que Deus não odeia ninguém, mas que também não ama. O homem cujas mãos doloridas sonha o que deverá ser seu possível futuro acredita na hipótese que confirma a bondade divina. O segundo, Domingues, revive-O a cada pronúncia de Seu sagrado nome com a mais profunda indiferença. Seu indigente militarismo fora crucial para tal escolha. Uma descarga no peito revelou-lhe a malícia aos vinte; uma morte por que fora responsável tratou de agravar-lhe ainda mais os nervos. Aos vinte e nove anos torna-se Tenente; tendo, porém, agora, dezenas dos mais sanguinários inimigos às costas. Nunca mais atingira-o sequer uma bala; jamais o atingira, até então, uma mulher. Erra de prostíbulos às batalhas; das batalhas aos bares; dos bares aos prostíbulos. De uma correspondência de Dr. Alípio Mello, comandante da capital, recebe ordens prontamente. Passados dias responde-lhe de sua benevolência para com a nobre causa, aguardando somente a confirmação e a data da investida. Dias mais; e a confirmação. Algumas semanas lhe são suficientes para o acampar e margear o arraial com seus mais de cem homens. O sangue, precedido pela iminente guerra, dá à Domingues um ar imperial. Um escuro rio que pende lentamente da noite a poucos metros do vasto e agitado campo de batalha convida-o silenciosamente. Domingues dá o dorso às aguas; mergulha solitário. Ao boiar enxerga no cimo de uma negra serra aquilo que jamais o sensibilizara; o brilhante universo. Chora; refaz-se rapidamente enquanto o surpreende o inexplicável sentimento; enxuga-se; repousa. Neste ponto do relato a figura de Domingues se dilui. Ao amanhecer desperta-o o irrefreável vozerio dos soldados. “Tenente, uma mulher o procura. É do arraial.” “Que entre rápido a rapariga, pois não tenho tempo”. Traga uma bebida amarga quando (sem que ele a veja) toca-lhe a mão uma irresistível mulher. Domingues, ainda anuveado pela noite anterior, redimensiona o olhar ao olhar de quem o toca. A inexplicável noite torna-se explicável. Acreditem; ele a ama imediatamente.

Inicia-se então para Domingues os seus mais lúcidos dias. A lucidez de que fala, confidenciada em uma carta a um de seus amigos e superiores da capital, é um inédito amor de uma guapa de escuros olhos e fronte felina. À romântica declaração anexa um novo plano para a invasão do arraial; quer entrar pelo flanco do norte de modo a surpreender o voraz inimigo, e que para tal estratégia aguardaria ordens de um possível adiamento. Duas semanas mais lhe outorgam. Duas semanas mais lhe são necessárias para arrancar numa noite (a dentes) a roupa e a honra daquela reluzente mulher.

Na mesma noite Domingues a promete poupar da morte um morador do arraial, um único ente que, segundo ela, é seu irmão mais velho, vítima das más influências de um bando de sertanejos desabençoados. Aos murmúrios de uma agitada tropa desperta; revolve meia cabana sem encontrá-la. À outra metade encontra-a de pé entre o catre e a lona, o que o faz pensar que o que sente é capaz de comportar uma tropa inteira a marchar em seu peito. Ela lhe ajeita a farda docemente como ainda não o fizera; irradia contiguamente em seus olhos, embora Domingues não o saiba, a antiguidade dos tapetes persas e o futuro de um filho. Domingues se despede; com o mesmo ar imperial recebe o caloroso beijo e sai à planície. Nessa paixão não tarda em chegar o dia da batalha.

Perfilados os soldados já não resta tanto o que fazer, a não ser avançar. O que hei de contar (o que esperar de um simples santanense) atraiu a fama para este pequeno subúrbio do sul por conter uma história que a todos juram ser fiéis. Portanto, sigo ao desfecho sem delongas.

Aos trinta dias de março Domingues aguarda a queda da tarde por conter em sua cor a glória do sangue e por preceder à noite, este veículo manifesto dos pesadelos; a mando de Domingues é dado a somente um homem sobreviver. Suas características são elucidadas aos homens pelo próprio Tenente horas a pouco do total aniquilamento. Invade pelo norte com quarenta cavalos surpreendendo meia dúzia de jagunços, enquanto o restante, vindos do sul, esmagam pequenos barretes endemoniados conferindo ao batalhão o menor número de baixas de toda a sua história. Homens, mulheres, crianças e animais são dizimados de suas almas como a pólvora acesa. Reúnem-se quase uma centena de cavalos em meio aos destroços; um homem ensanguentado e amarrado ao centro parece incontrolável. Domingues lhe mira de cima com os olhos, arranca-lhe com a espada a corda ao punho e diz:

— Saiba ter visto nesta cinza tarde o poder de vosso senhor a quem devia tê-lo respeito, Dr. Alípio Mello; e também à compaixão de sua querida irmã, verdadeira salvação de vossa desprezível vida; pois não fosse o amor que trazes por mim e do meu a ela jamais estaria ouvindo o vento que agora ressoa por seus ouvidos. Vai-te embora no mundo, e não me pises mais nestas amaldiçoadas terras que um dia foram férteis e que agora jazem apenas cadáveres.

Atroz destino. Agora só; entre os escombros de sua terra e de sua execrada gente, um homem duplamente humilhado, esgotado, a adormecer, mal consegue mover-se. Na imensa planície o rastro da tropa que já se distanciara. Dentro de si o ressoar da gélida brisa, da escuridão e o sentimento de traição de sua amada esposa. Enviara-a a brutos mandos ao acampamento para trazer-lhe qualquer notícia que lhe pudesse salvar a nobre causa...

Na manhã de trinta e um de março de 1896, ano por muitos (saibamos) jamais esquecido, à beira da estrada de São Serraro, antiga Santana do Sul, um homem, cujas mãos ainda violadas mal se mexem pelo incessante e exaustivo dia anterior, encontra-se em um extenso milharal...

Para Jorge Luis Borges



EPÍLOGO

O primeiro parágrafo deste conto me foi revelado em sonho a pelo menos dois anos num mês de junho ou julho. Fruto de uma fatal coincidência ou mera ação do inconsciente pareço encontrar semelhanças, ou mesmo, estreita relação entre os fatos a mim recentemente ocorridos e o premonitório parágrafo. Coincidências ou não, o fato é que após esses anos entrego o restante do conto não com o sentido de missão cumprida (terminá-lo foi para mim uma urgência uma vez que sentia-o perdendo de vista e propósito) mas resignado com o seu resultado.


O prazer de elaborar uma narrativa consiste em compartilhar capacidades que só subsistem no ato da leitura. Sem o leitor penso jamais ser capaz de qualquer execução, dado que a imaginação exija sempre o contato com uma outra, cabendo ao escritor o simples papel de escrever o minímo possível e deixar com que lhe preencham o resto.

Certa vez afirmou-me Davidson Soares de sua estranha, mas notória, resistência aos contos cíclicos. Não admitia que lhe fossem consideradas quaisquer tentativas a esse respeito. Dizia que mais da metade das obras produzidas no último século pendiam para este desconcerto, ou melhor, este insulto à criatividade e que terminar um conto unindo-o ao começo é o mesmo que impor a todos os seres vivos que mordam a própria cauda e girem em torno de si mesmos eternamente (estou certo de que se referia à incapacidade inventiva). Creio refutá-lo neste conto por acrescentar ao ato cíclico um pormenor um pouco mais acentuado que os outros.

Cada linha escrita neste conto quis percorrer e emocionar o pensamento alheio no instante mesmo em que foi redigida. Portanto, espero sejas conivente com o que penso a teu respeito leitor. E ainda: não me condenes se em algum momento deixei escapar minha incapacidade de elaboração. Em todo caso, que ao menos essa elaboração (que também é a melhor de mim) não te seja tosca.

Contagem, 29 de março de 2006

Um comentário:

Quel disse...

Bom, já fiz um comentário ao ler esse texto da primeira vez, e o repito aqui.
Apesar de começadas pelo final, que qse nunca é inteiro, essas histórias cíclicas me aguçam a curiosidade em saber o decorrer da história até chegar a esse desfecho, que sempre é acrescido de mais algumas infomações.
portanto discordo do seu amigo.