quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Teia



“Todo crime é vulgar, assim como
toda vulgaridade é criminosa.”

Oscar Wilde

Esta carta foi entregue à polícia à data de 12 de no­vembro de 2008, o que causou completa estranheza e comoção aos investigadores locais. Primeiro, pela frie­za com que se suce­deram os fatos a seguir. Se­gundo, pelos prováveis distúrbios psicológicos que possam acometer o autor, visto que a carta foi entre­gue acom­panhada de um presente de natal antecipa­do, um pre­sente que causaria, estou certo, até mesmo ao pior dos homens a pior das repulsas. É importante que se saiba também que o remetente ainda permanece foragido, ao pas­so que a destinatária, após a entrega da carta, en­contra-se desaparecida. Seguimos portanto com a mis­siva originalmen­te trans­posta, sem esquecermos, por fim, que a mesma teve o seu nome alterado por segre­do de justiça*, e que respondia pela profissão de psi­cóloga, num hospital público de Minas Gerais.

20 de agosto de 2009
O Editor

Querida Patrícia*,

Escrevo-lhe neste dia tão belo, de um sol tão ale­gre, en­quanto os pássaros perfazem a minha janela com danças e pi­ruetas, para relatar algo que em muito contrasta com este ce­nário. Confesso, antes de mais nada, que o dia talvez tenha percebido a minha aflição, e que para me dar uma mãozinha, possa estar que­rendo me deter em sua alegria, coisa que não me valeu de muito, pois para mim a vida está agora mais que cinzenta.

Se estiver lendo esta carta, certamente já terá rece­bido o meu pedido de que só após a leitura desejo que abra o pre­sente que deixei em suas mãos, como prova de meu carinho e de minha lealdade também. Cabe que eu a lembre de que todo o relato a seguir só tenha sido possível graças à boa vontade de alguns maus homens que andam por este planeta a roer as nossas carnes, homens que se aventuram em busca de crimes e delitos, e que particularmente neste sábado te­nham tristemente topado com alguém cujo propósito iria ul­trapassar as suas expectativas em relação às vítimas de que andavam acostumados.

Vale também lembrar de que o estopim de tudo isso se deve ao fato de nesta inesquecível e trágica madrugada de sábado, nos decidimos por finalmente estreitar as nossas rela­ções, o que estaria amplamente proibido segundo as normas ou ética médicas, de que pacientes e psicoterapeutas jamais haveriam de se envolver. E com exceção de toda aquela noi­te, até a constatação do crime que relatarei, quero que saiba que tudo correu além de minhas expectativas, e que não fos­se pelo desastrado furto, estaríamos, estou certo, ainda em clima de amor, e não como cá estou, em clima de enterro.

Na noite do fato, daquele terrível fato e razão desta carta, em que meu veí­culo fora brutalmente ar­rombado, como você sabe, e em que algum infeliz melian­te, mesmo que não obten­do sucesso em seu propósito, acabou por da­nificar tam­bém o meu orgulho, quero que se lembre de minhas palavras: “De que al­guém deveria pagar por aquilo; de que nunca me dei com a derrota, e que nos pró­ximos dias eu acharia de vin­gar-me”. Lembrá-la tam­bém de que ficamos acertados os dois, de que de algum modo eu haveria de recuperar-me deste senti­mento tão arra­sador, a impotência, e como suspeitei de que você quisesse duvidar de minha promessa, algo que no mo­mento já esteja um tan­to fora de cogitação, fui em busca de sua execução, num modo um tanto ele­gante de prová-la que nunca minto.

Eu não estava enganado, Patrícia, quando lhe disse que este ato fora para mim muito maior que para mui­tos outros, pois todo ato (creio) é de algum modo sempre justificado – o que permite que sejam também drasticamente invasores e hostis. Que o meliante tem certamente os seus princípios norteadores, que desembocam no furto, bem como eu tam­bém o tive – e nisso estive apenas na prática de meus direitos. Ao contrário do que pensam os religiosos, intuo cada vez mais que o destino seja uma su­cessão de princípios que adquirimos ao longo da vida, e que permanece em nosso inconsciente, a moldar atos como estes.

Naquele domingo acordei por volta das duas da tar­de, olhei para o teto de meu quarto e por alguns instan­tes, ainda sono­lentos, tentei crer que tudo não tinha passado de um terrível pesadelo. Levantei-me da cama querendo, na verdade, dese­jando que tudo fosse fruto de algumas horas de sono, acompanhados pela má digestão de minha janta, de que o meu dia seguiria no tom em que estava, sem interrupções inoportu­nas, com meus prazeres habituais. Portan­to, criando coragem e espre­mendo minha memória para que a verdade de lá não ousasse sair, dirigi-me ao carro para constatar, tristemente, que não era o caso. Abri o porta-malas, algo que não fizera no instante do crime, percebendo que me faltavam alguns obje­tos de valor, que outras peças insubstituíveis haviam sido le­vadas sem ao menos uma despedida, e que em al­gum lugar desta cidade vagava o autor deste crime, ileso, no que parali­sei-me por com­pleto. Eu me lembro que naquele domingo meus familiares esta­vam todos reunidos em minha casa, que o dia (que prometia a todos muita diversão) não poderia con­tar com a minha; que meus sobrinhos e primos nem se aven­turavam a qualquer proximidade, pois pareciam perceber-me em uma com­pleta desolação. Então, a revolta se apossou de mim, como nunca. O que ve­nho relatar agora a você é algo de que já me envergonho, mas que por outro lado (devo também confessar) trouxe-me a paz novamente, e on­tem mesmo o confirmei pela boa noite de sono que tive.

Após a minha paralisação, que foi interrompida por minha mãe que me invocava ao almoço, pensei que dali a alguns mi­nutos estaria estabelecido, e que o me­lhor a se fazer era for­rar o estômago já maltratado pela noite anterior, e se­guir com minha vida em diante. Mas durante a refeição, Patrícia, vendo eu que a harmonia familiar e toda aquela felicidade poderia pouco a pouco se esvair não somente de meu lar mas de to­dos os lares deste planeta por conta de atos tão vis e desu­manos, algo inumano pareceu tomar conta de mim, no que me levantei, sem que ninguém me entendesse, correndo à cozinha de minha casa, em busca de algum objeto.

Como já disse, todo ato busca por sua justificativa. Estes atos, sempre exatos (pois não pode haver um ato inexato) re­querem de seus autores uma lógica muito sutil e verdadeira, e que naquele instante em que buscava por algo que pudesse representar a minha vontade, iam se clareando cada vez mais em meu ser. Intuí que seria impossível sanar aquela dívida com o verdadeiro autor do fato, que naquele momento já es­taria bem longe e sorridente, mas que na minha lógica eu po­deria de algum modo vingar-me com justiça, mesmo que nun­ca topasse com o dito. Pensei que há uma teia (para muitos invisível) de marginais e assaltan­tes, de agressores e fanfar­reiros, de criminosos de todos os ti­pos e lugares, que pode­riam pagar pela ofensa que me ti­nham feito, e que descorti­nar apenas um deles, era como descortinar a todos. Na verda­de, que uma vingança bem exe­cutada contra apenas uma unidade desta teia infinita, era uma vingança contra a desmo­ralização daqueles a quem carinhosamente compartilhavam de minha mesa, e que acaso não estivesse enganado, que o lindo dia estaria a meu favor, contra as trevas da noite ante­rior.

Entrei em meu carro por volta das seis da noite de domin­go, com um objeto que agora se encontra no fundo de um rio escuro, e saí à caça, furioso. Enquanto seguia pelas ruas, achei de festejar propriamente o ato de coragem, colocando em meu rádio, em homenagem à vítima, algumas canções de sucesso in­ternacional. Não demorei a encontrar o ninho que cuidadosamente chega­ria, repleto de minhocas, para alimen­tá-los. Avistei, bem ao longe, numa 'boca de fumo' alguém que me pu­desse fazer este favor, ou seja, de me devo­lver as noi­tes tranquilas, que minha alma tanto almejava, agora que as perde­ra. Após a aproximação, que meticulosa­mente arqui­tetei, desci o vidro do carro e perguntei-lhe por alguns objetos de segunda mão, se por um acaso não es­taria disposto a ven­der-me artefatos automotivos por preços camaradas, no que me respondeu, com aquele linguajar dos mais pobres, que não muito longe dali haveria de obtê-los. Então, pensei, en­quanto maleficamente sorria, que para a ruína desta teia infi­nita, que são as teias dos que agem de má-fé; eu deveria re­compor-me silenciosamente a seu pedido, e segui-lo até o tal lu­gar. Após a chegada, numa viela que não me arrisco a des­crever, topei com o retorno de uma figura desprezível e orgu­lhosa, e detive-me com ela sobre al­guns modelos tecnológi­cos, quase não me segurando de ódio, mas com um firme sor­riso.

Não demorou muito Patrícia que o pobre retornasse muitas e muitas vezes, cada vez com um modelo diferente, com to­dos estes aparatos modernos que têm preenchido o sentido de nossa existência, o que me fez pensar em quantos mais haveria dentro daquele barraco imundo e quantos destinos como o meu, quantos suaves domingos não haviam se con­vertido em pequenos pesadelos. Com alguns frutos de seu cri­me, o que me fez pensar que para ele aquilo fosse apenas fruto de seu trabalho, despejou-me uns quantos objetos sem o menor carinho, algo que me fez ajustar os cintos, para não retirar-lhe de imediato o vazio do olhar e seu português arcai­co dos lábios. O que ele não sabia, e que agora jamais saberá, é que todo trabalho age de maneira similar no destino dos ho­mens. Que todo trabalho, de alguma maneira, é res­ponsável por alterar o destino do outro, os princípios dos outros e consequentemente as noites tranquilas que cada ho­mem recebe dos céus. E que se para uma barata o dedetizador acaba por ser o inferno, achei que para ele eu também o podia ser, e muito justamente.

Com a frieza que você bem conhece, acertei com a es­colha de alguns pro­dutos um tanto danificados pela vio­lência de suas ferramentas, convidei-o a entrar em meu carro, com um tom que ele não pôde recusar, dizendo que o pagaria muito mais pelo que aquilo valia, mas que o dinheiro se encontrava em posse dos desprezíveis ban­queiros. Disse-lhe que em algum lugar daquela nojenta cidade acharíamos de topar com um caixa eletrônico, e pisei fundo em meu acelerador, transportando agora a minha presa ao seu cruel destino. Portanto, após entrar em meu carro, que era vigiado somente por dois vicia­dos de um beco que na manhã seguinte mal saberiam os seus próprios nomes, saí pela rodovia insessante, sali­vando, como só as cobras salivam.

Aquela rodovia, de tão fria e indiferente, seria o palco para minha justiça. Eu, que até então respondia pelo bom nome, estaria dali há alguns instantes imerso no hall daqueles que cometem o mais grave delito que possa ser cometido por um homem. Mas a sensação (ao contrário do que você pensará) não era a do remorso, mas a de puro alívio, o que me fez en­tretê-lo com boas piadas, todas relacionadas ao que ele pode­ria compre­ender, como as de cunho criminoso. Ele me apre­sentava triunfante os locais de desova, as estratégias unilate­rais de sua patética organização, os pontos em que havia a facilitação do cidadão comum, a macro-estrutura funcional e burocrática das ruas, uma distribuição de domingos perdidos, a verdadeira fábrica de sentimentos infe­lizes e atrozes. Eu o acariciava com certas e estratégicas palavras, arrancando como a um rato de laboratório, tudo o que bem me convinha, e nisso o via cada vez mais morto a meu lado.

Enquanto retirava de minha presa a justificativa para o meu abate, ele seguia apontando-me os seus segredos, con­fiado que estava em minha fragilidade e temor, concordando risonho com cada frase por mim pronunciada, enquanto ía­mos pela estrada agora escura, margeadas por amplas serras e mato – palco perfeito para minha mise en scène. Lembro-me de que sorria ainda mais quando lhe dizia que algum idio­ta estava nos financiando e ao nosso prazer, tampouco fazen­do idéia de que a todo momento seus dentes enegrecidos e sua vestimenta esportiva sugeriam-me, enquanto ríamos, o como ficariam ainda mais belas e suaves no quente tom rubro da­quele líquido que somente por mais poucos minutos circu­laria em seus pul­sos.

Nesta altura, perguntei-lhe se era ele autor daqueles furtos, e como o bem fazem os retóricos e o diabo, lançando-lhe um olhar admirado, como se aquilo pertencesse aos mais louvá­veis e corajosos dos atos, no que me respondia assertivamen­te que muitos daqueles objetos, sim, vinham de sua habilidade com as chaves; de sua habilidade com os alarmes.

Entrei numa marginal, tremendo, informei-lhe que logo a frente teríamos um banco vinte e quatro horas para o saque de sua grana, e que parássemos em algum ponto dali bem ra­pidamente, para minhas necessidades, que estavam a ponto de estourar. Ele, perguntando-me se era de meu agrado, sugeriu-me que fumássemos 'unzinho' ali mesmo de modo a não perdermos a viagem, e que ali (numa clareira) es­taria o lugar perfeito para celar a nova parceria que entre nós surgia. Pedi-lhe num tom ameno que o fôsse enrolando, enquanto eu molharia algum formigueiro, no que já sentado e morrendo às gargalhadas, a nada desconfiava. Eu sempre acreditei que fosse uma de minhas maiores competências a arte do con­vencimento, mas naquele polha essa minha suspeição estava indubitavelmente consolida­da, tamanha era a sua camaradagem comigo, logo comigo, que o devolveria ao julgamento de Alá e às portas do inferno.

A partir desse momento não entrarei em detalhes, embora pense que você, Patrícia, os adoraria. A composição dos fatos (embora eu os almejasse) foram para mim tão fortes, que há dois dias venho tentando estirpá-los de mim, e que é bom que para que isso aconteça, eu não os invoque além do necessário. Portanto, somente para que entenda, minha adorá­vel psicóloga, dizer-lhe rapidamente de como sucedeu o fim daquela unidade de uma teia imensa de criminosos, e de como se fez a justiça e minhas tranquilas noites de sono, sem o aparato artificioso de pastilhas de Veronal.

Após a chuva que recebeu o formigueiro, que do que se passava nada entendeu, subi o barranco topando-me com aquela figura já em transe pela quantidade de tragos, com den­tes colorados como que por açúcar mascavo, oferecendo-me uma ponta, que aceitei com educação. Em minha cintura trazia uma faca dentada, daquelas baratas em que cortamos o pão pela manhã, no que pensei, na verdade, no que me lembrei de um crime muito similar que há alguns anos já o te­ria co­metido.

Este crime antigo, para que você se inteire, havia-me ocor­rido no natal de 2003. Numa fazenda do norte de Minas, um ex-sogro levara-me a escolher um animal para o abate, e que o pobre seria (por tradição) morto na noite da festa, com um belo punhal que me mostrou instantes antes. Pedi-lhe, um tanto encabulado, que eu o matasse, pois seria uma experiên­cia iné­dita para um rapaz que crescera nas cidades, no que me autorizou com um olhar sorridente, mas um sorriso ruim. Não preciso dizer que obtive sucesso no assassinato do pobre leitão, e que a maior descoberta foi perceber que ao contrário do que nos ensinam os filmes, não foi preciso nenhuma força, ou quase qualquer esforço físico para afundar-lhe o punhal pelo coração, tama­nha é a fragilidade da pele. Como só quem matou para saber disso, lhe digo que o contrário também não aconteceu a nossa pobre unidade da teia, a este pobre paspalho, que narrava agora a gargalhadas o seu último furto, suge­rido por mim.

Era como se eu quisesse ter a certeza de que o endereço certo daquela figura seria o inferno e não o céu de Alá, o que pude ter confirmado, a cada palavra que pronunciava, que não estava diante de um homem santo, mas de um delin­quente que merecia partir dessa, para pior. Pedi-lhe um ins­tante de silêncio. E lhe perguntei, pausadamente, se por um acaso não temia que alguém, em algum dia, se vingasse por isso. No que me respondeu que os homens andavam muito covardes, pois foram deixando de resolver ao longo dos tem­pos a seus próprios problemas; e que encorajados à entrega desta competên­cia ao frágil aparato do Estado oficial – torna­ram-se lesmas nas ruas. Claro que tudo isso me dizia bem a sua maneira, bem como eles constumam entender no meio em que vivem, mas o seu sentido fi­cou-me tão claro, que não adiei mais minha vontade, e cedendo ao momento, rasguei-lhe rapida e prazerosamente a garganta. Enquanto seus olhos me miravam abismados, eu lhe di­zia que assim ele morreria, para sanar uma dívida que tinha de ser sanada, senão pelo ver­dadeiro autor, mas pelo primeiro da mesma estirpe que me cruzasse o cami­nho. Dito num modo que ele bem enten­deu antes de partir, proferi sorrindo que desse um olá ao de­mônio, e que se quisesse poderia também dizê-lo que eu o aguardava um dia para uma cerveja, evidente, para bons diá­logos, que sei que teríamos.

Limpei a faca com sua camisa. Arranquei-lhe com cuidado um dos dedos de sua mão, que é o presente que lhe entrego agora, Patrícia, para que não me lances mais o olhar de sua dúvida. Espero que não se ofenda com tamanho disparate de meus atos, com tamanho disparate também de meu cruel mas prazeroso destino, e que entenda que o que fiz foi ape­nas restau­rar um estado de meu espírito que se encontrava agora transmutado pela vio­lência de alguns. E mais uma coi­sa: que agora você guarda um segredo tão especial e assusta­dor de minha conduta, que sou capaz de pedí-la, de implorá-la que não me denuncie, por que o crime, segundo fontes jor­nalísticas, já foi atribuído a dívidas com o tráfico, o que me inocenta para todo o sempre.

Desde já agradeço a sua atenção e peço que não fique com este artefato macabro, que o lançe ao vaso ou a um cão de rua faminto. Sugiro que não o enterre, pois o seu proprietário já teve o seu devido enterro, que por mim mesmo fora confe­rido, e que esteve quase vazio, com uma família que também esteve aliviada, segundo pude constatar ao conversar com a pobre mãe. Que Deus a tenha, porque ao diabo o presente já está mais que entregue.

Contagem, 11 de novembro de 2008
Helder Fernandes

Pós-escrito: O crime, que chocou a muitos, parece agora encontrar força pela internet. Alguns andam propagando a carta como um manifesto à sociedade, que foram espalhados, soube-se, até em alguns outros idiomas, visto que o fenômeno da vio­lência pareça estar presente também em porções mais diversas da cultura humana. Alguns querem atribuir à carta um pe­dido de revolta silenciosa que deve acontecer, não em tom de pedido mas de uma espécie de profecia, que inevitavelmente não demora a estampar as páginas de jornais de todo o globo. Segundo relatos de uma matéria publicada recentemente no renomado jornal americano, o Washington Post, a carta tem feito com que os índices de criminalidade recuem, e o que é pior, que alguns já nem aguardam mais que algo de ruim lhes aconteça, saindo à caça como uma espécie de diversão, res­peitando sempre, evidente, a lógica da teia infinita, a que moralmente estão submetidos. Na Alemanha se soube que o ato está migrando para os políticos, e que em breve, segundo a previsão dos mais otimistas, o mundo correrá livre desta teia, e até mesmo livre de policiais, visto que todo cidadão comum transformou-se em guardião de sua política interna e externa, de sua vizinhança, de sua família e de si próprio, como era o esperado.

Outra questão que tem sido colocada pela imprensa nacio­nal e internacional é que foragido e desaparecida vivem cal­mamente na Inglaterra, local onde a criminalidade vem se re­duzindo cada vez mais, chegando quase à nulidade, e que vi­vem felizes da vida já com duas crianças, e uma terceira à caminho. Segundo o biógrafo britânico Jon Halliday, a psicóloga ministra palestras de auto-ajuda agora a mulheres que foram ao longo dos anos desencorajadas ao enfrente de marginais e trombadinhas, e que atrás do palco em que se apresenta, há um pequeno artefato, uma caixa, cujo conteúdo só será revelado após a morte do casal. Estipula-se de que há nele ainda o dedo do primeiro crucificado da história, que morreu em prol da nova teoria de libertação moderna, a teoria da Teia Infinita, capaz de devolver a tão almejada paz ao mundo e a todos.

No Rio de Janeiro governos e população querem a retirada de algumas estátuas da cidade, para a colocação deste pobre personagem da história, que morreu sem saber o porquê, em­bora intuísse em seus últimos sopros que deveria estar mor­rendo por algo que fosse mesmo justo, visto que em vida nunca prestou.

02 de novembro de 2009
O Editor

Para Patrícia Paiva

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O Pacto


“No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai para trás, ó vós que entrais, toda a esperança!
“Estas palavras, em letreiro escuro,
Eu vi, por cima de uma porta escrito.
‘Seu sentido’ — disse eu — ‘Mestre me é duro.”

Dante Alighieri: A Divina Comédia, Inferno - Canto III

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PARTE I

Hoje descobri (o fato foi inevitável) descobri que minha morte anda bem próxima. A história não é sequer longa, capaz de deixar meus leitores perplexos, a roer unhas, ou coisa parecida. Não conseguirei com este relato sequer um convite ao Sítio Moinho das Pedras — local mais proeminente dos poetas e intelectuais de minha cidade — e quando muito a aceitação numa publicação local de baixa vendagem. Quisera eu poder escrever aqui um mistério daqueles de tirar o chapéu, de deixar leitores embasbacados e letárgicos como as obras de Borges ou de Edgar Allan Poe. Ou mesmo aproximar-me de Kafka ou Stephen King, ou de ser reproduzido nas gloriosas telas de uma arte que um dia foi vulgar (o cinema) e que hoje serve para coroar as maiores páginas de nossa produção literária, como o bem fez o nobre inventor britânico Arthur Clarke. Mas a verdade se escreveu mais cruelmente a mim — agora que pertenço a realidade dos semi-mortos. Verdade é que quando me dei conta, há bem poucos três meses, é que pude perceber a gravidade do fato que por mim mesmo fora criado, e cuja escapatória pressinto que inexista. Pois é algo que segundo especialistas no assunto não terei mais como me esquivar. Não mais, pobre filósofo, agora que tudo teve o seu início e que consigo enxergar o meu trágico mas engraçado destino. É evidente também que não pretendo aqui me demorar demais, até porque o leitor tem mais o que fazer da vida — como pagar uma bela hipoteca vencida ou trair o seu cônjuge com um ser muito inferior a um inseto — mas, gosto por gosto, e para ser franco, que utilidade possa ter ao leitor o explanar de um fato que aos olhos científicos ou extra-mundanos seja insolucionável? Honestamente, porque pretendo lançar com o meu relato, ou uma tentativa desesperada de obter alguma luz para meu cruel tropeço, ou de avisar aqueles desavisados que pretendam alçar vôos como os que alçei com este maldito instrumento da ciência, razão do amor dos intelectuais e causa de minha ruína — A Filosofia! Maldito eu seja! Cabe também dizer que trago uma ligeira esperança de que alguém, ou de que em algum lugar possa existir uma viva-alma capaz de reconhecer o caso, de reconhecer que o mal a que me refiro não seja assim de todo tão insolucionável e que me telefone numa tarde dizendo: “Olá! Não sou uma cartomante, tampouco entorto colheres, mas tenho a resposta para o seu mal!” Eu estaria agradecido pelo resto de minha vida, e confesso estar até disposto a remunerá-lo — e muito bem! Enfim, que alguma alma neste planeta contenha a resposta para me safar de meu erro, visto que aos montes andam a propagar por aí a sua intimidade com os espíritos do bem e do mal. Mas cabe o alerta: como nos seriados de TV, não tentem fazer em casa o que minha inaptidão filósofica conseguiu — tristemente — alcançar. E lembrem-se dos recados dos avós: “Com o além — como bem entendem os antigos e que os pobres modernos nada sabem — não se pode brincar”. Por isso, não percamos mais tempo.

Pareço ter encontrado outro dia notícias do surgimento da lenda dos Pactos com o Diabo, o que me fez entender o desespero em que atualmente me encontro. Li que na antiga Alemanha e em países circundantes tais estórias eram propagadas na velocidade exorbitante da oralidade (mais veloz do que nossa poderosa internet) e que tais palavras acrescidas de uma centena de adjetivos sagrados eram respeitados de norte ao sul daquele país, ao ponto de se evitarem até a sua pronúncia, como os 99 nomes de Lúcifer. Da Dinamarca à Áustria, por toda a extensão do Mar Báltico até os Países Baixos estas palavras profanas como o “ão” das trevas, o “beuzebu” dos sonhos, o “cão” da noite, o “Set” egípcio, o “Mantus” babilônio, ou o “Haboryn” das mortes misteriosas e sangrentas — e muitos outros — tinham um valor muito maior que em nossos tempos. Ou seja, se me fosse permitido uma analogia em nossos dias, diria que seria o equivalente à mencionar em plena Second Av em Manhattan — em 1950 — a eleição de um negro nos EUA. Ou para ser mais exato que disséssemos numa sessão cinematográfica de pé e em voz alta: “Porque vocês — que não entendem o inglês — sempre riem antes que a piada aconteça?”. É o que você imaginou leitor, seria trágico naqueles tempos proferirem tais palavras profanas em alto e bom tom. O que quero dizer é que é evidente que em nossos tempos tais palavras servem-se para tudo, menos às crenças. E prova disso são os nossos poderosos programas de auditório com donzelas vestidas à caráter, nosso cruel e pagão cinema, ou nossa Publicidade que pouco se importa com estas entidades malévolas, desde que transmitam e resolvam os problemas estratégicos do marketing. Mas passemos para a razão primordial de minha queda nas sombras.

Em 2001 enquanto me graduava, achei de me esquivar aos clamores da Filosofia. À esta ciência, ou como bem dizia Pitágoras, à mais bela sinfonia de todas as canções já criadas pela humanidade, entreguei-me sem medo. Pobre garoto! Soubesse eu da malícia dos psicólogos — patifes — que se entregam a Freud com orientação, trataria de tropeçar com mais cuidado em suas armadilhas. Mas a Filosofia — como bem sabem os intelectuais — é também uma praga que a tudo consome, não deixando uma agulha sobre este planeta sem indagações. Portanto, sem qualquer chance de negá-la, entre Gestaltistas do objeto e professores inescrupulosos de uma universidade, mergulhei de cabeça em seus belos esconderijos. É claro que devo a esta época os meus mais belos deleites e que a cada dia me deparava com a beleza que são a compreensão da sutil linguagem da natureza humana e das incríveis manisfestações dos astros. Mas não demorou que o turvo aspecto das coisas e da realidade, que agora se transfiguravam em magníficas demonstrações de um poder secular que só a Filosofia é capaz de alcançar e entregar a famintos olhos, me tornassem em cético. Do ceticismo passei ao niilismo. Do niilismo à desconstrução de D-us. Da desconstrução de D-us (não ouso mais pronunciar ou escrever esta palavra divina) passei à desconstrução dos também 99 nomes profanos tão temidos na Alemanha antiga de que há pouco falei.
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Como podem ver, divagava sem o menor problema em todos as matérias da filosofia contemporânea, em todas as suas temáticas — sem pudor. A esta altura era já o amigo das mais ilustres conversas, e não me encabulava a cada vez que me solicitavam quando o assunto pedisse um pouco menos de cautela — como em assuntos de ordem religiosa. Lá estava eu, como um especialista sempre disposto a colaborar com os desvios significativos da Bíblia, do antigo Hebraico (do Alef ao Tav) ou em assuntos mais arriscados — de ordem sobrenatural. Lembro-me até de numa noite de bebedeira — sempre inclinado pelo gosto de meu público — ter sugerido aos meus ouvintes brincar com os nomes divinos, convertendo-os em piadas as mais horrendas, algo que não me atrevo a escrever-lhes. Vocês logo entenderão a tragédia que me consome as noites e dias e que não ousarei entreter-lhes por muito mais tempo. Mas que me caiba alertar-lhes sobre um mal ainda desconhecido a muitos, e que age silenciosamente nos séculos (só hoje sei) como numa peça musical de John Cage, porém, com um compasso tão infinito e uníssono que, creio, alma humana alguma possa conceber.

Como dizia, do estudo do método ideal (a lógica) avançei ao estudo da forma ideal, a estética. Ah! Como a felicidade é capaz de dar o ar da graça a quem a frequenta. Pois ter o domínio do belo e do feio em suas mãos, é uma dádiva dos céus tão exuberante e poderosa, que aqueles que a experimentam são contundentes em afirmar que nada mais possa perturbar-lhes os sentidos. Mas o que rapazes como eu não poderiam saber é que um convite como este, capaz de nos elevar tão alto e ao ar dos mais rarefeitos, esconde uma descida mais profunda e horripilante para quem se arrisca demais em seus segredos. Do estudo da conduta ideal — a mais nobre das compreensões, a ética — fui ao estudo da organização social ideal — a política. Como o leitor bem poderá prever, atingi o grau máximo do filósofo ao percorrer as sagradas linhas de Schopenhauer, que me ensinaram a perceber a realidade máxima por meio da Metafísica, e foi quando tudo começou a ruir em minha vida. Pois com este instrumento divino (e hoje não trago esta certeza) pude perceber o que acontecia em minha vida e de como tudo se desenhava para desembocar no que pressinto que será a extinção de meu nome — para todo o sempre.

No inverno de 2003 formava-me sem louvor às custas de medianas notas, alcançadas pela exigência de respostas de ordem objetiva. Das múltiplas escolhas de uma centena de avaliações, que me aborreciam bastasse que abrisse as provas, guardo pouca ou nenhuma saudade. Mas o fato é que me formava e isso em nossos tempos já era o bastante. Na noite de minha formatura, portanto, para festejar o fim desta penúria, abusei do álcool pendenciador, e caí nas ruas com amigos de infância, para rodar por aí, sem rumo — como bons vagabundos. Às uma e meia da manhã topávamos com um boteco estranhíssimo e sujo, e por tal contraste de alegria e festa, entramos em suas perpendiculares portas.

Entre os antigos camponeses era por todos conhecido que se um homem de bem penetrasse em lugares obscuros e vis, isso se dava por uma atração invisível: de que um senhor das trevas, ajudado pela influência do álcool, o guiava para o pacto sem que o soubesse. É claro que esta é a única explicação que encontrei para as mudanças que até então vêm acontecendo em minha vida, e que são muito evidentes para mim, embora possam parecer até de infantilidade para o esperto leitor. Mas cabe que eu narre os fatos apenas como se sucederam, e deixe o resto por conta da opinião alheia, a dizer se tenho mesmo razão, ou se sofro de algum outro mal que não o que vos narro desde as primeiras linhas deste relato.
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Nesta noite de farras e comemorações detive-me diante de meus ilustres companheiros para dissecar alguns fatos que antecederam à entrada ao bar. Como exemplo, naquela noite havíamos nos deparado com um cão estarrecedor, cuja pelagem era límpida como o pixe em estado líquido, e seus olhos pareciam ser humanos e não as de um simples cão que despretensiosamente cruza o caminho dos homens. Lembro-me de que nos observava com atenção de uma esquina escura e mal arquitetada e que fez-nos adentrar às perpendiculares portas com um passo um tanto acelerado. Era também uma bela noite de lua cheia, e dirão que invento, sobreposta por nuvens ainda mais enegrecidas que aquele cão. Outro fato interessante, e que me fez interpelar a atenção de meus adoráveis e imprestáveis amigos, é que três cavalos cruzaram-nos logo à entrada do botequim. Na verdade, dois negros cavalos, belíssimos e com uma elegância que só os homens ricos e as mulheres simples podem ostentar, e que perseguiam galopantes um terceiro cavalo que me lembrava um unicórnio, tão branqueada era sua cor. Por último, coube-me encerrar a última manisfestação daquela noite, citando, ou melhor dizendo, mostrando o aspecto medonho e circunspecto do dono daquela joça, que mais parecia — e disso não tenho tanta certeza — o verdadeiro demônio que pudesse ser o responsável por minha desídia. Era um sujeito magro e alto, com braços tão longos e desajeitados que penso seria ele capaz de quase tocar o dedo na lua se se dispusesse a esticá-los para bocejar. De uma coloração pálida e com lábios tão finos como os dedos que afunilavam a sua mão, trazia uma voz ainda mais horripilante, como se achasse pouco o fato de ter nascido com um semblante tão cadavérico, e que entre os ítens indispensáveis aos que sofrem deste mal — a feiúra — não lhe pudesse faltar nenhum só ítem de série. Terminado o meu monólogo, e tendo sido agraciado por risos um tanto desconcertantes — pois me referia ao dono do bar diante de sua própria figura — mas claro, em terceira pessoa, como se de uma outra me referisse, começamos por engolir, classificatoriamente, umas quantas águas-ardentes, de sabores variados.

Daí por diante seguiu-se a noite sem novidade aparente. Uma meia dúzia de sertanejos já se haviam despedido do infeliz demônio atrás do balcão, e apenas a minha turma se mantinha intacta entre as mesas. Algumas horas já se haviam escorrido de nossos relógios, e seguíamos prazerosamente por sobre uma tese por mim desenvolvida ali mesmo naquela noite, sobre os pactos sagrados da antiguidade, e de como eu estaria disposto a percorrê-los acaso me deparasse com um daqueles manuais de magia negra... quando entrou pela porta um belo e bem trajado senhor, no que nos detivemos todos congelados de espanto, por sua espantosa e exuberante vestimenta. Com seus bem poucos cinquenta anos, e uma cabeleira entre o castanho claro com inumeráveis fios grisalhos, parecia chegar agora de uma ópera de Debussy, tão acertado era o seu traje, e tão alinhada sua combinação perfeita entre a gravata e os sapatos. Este senhor que nos causara a todos certa admiração instantânea não parecia um embriagado que na alta noite procura por um último gole destilado, mas, pelo contrário, e muito pelo contrário, entrou circunspecto e decidido, com um sorriso do tamanho de nossas feições boquiabertas, dizendo: “Uma boa noite a todos! Queiram os senhores perdoar-me a repentina entrada, mas achei que aqui encontraria — visto que ouvi risos — uma boa prosa para uma bela noite que ainda não se acabou.” Notei então que à sua voluptuosa e triunfante entrada um de meus amigos já acenava com assentimento com um leve abanar de sua cabeça, no que o interpelei de imediato para dizer que a reunião não demoraria a cessar, a contar pelo horário, e que certamente dali a alguns minutos já estaríamos de partida. Neste momento, neste terrível instante, meus amigos já lhe estendiam a melhor das cadeiras para que apressadamente se sentasse, não importando com minhas palavras, ou com o respeito que me deviam pela noite que teoricamente era a minha, a de minha tão louvada formatura. Imediatamente, e sem que seu sorriso se ausentasse um só instante de sua límpida e monumental face, este senhor que parecia ser mais antigo que o Egito, seguiu elegantemente com os seguintes dizeres: “Não é meu costume interferir numa roda sagrada, que são as rodas de amigos, sem que antes me cale a escutar sobre o que divagam estes nobres estudantes do século XXI, e antes, claro, que ouça do mais ilustre presente a autorização que desta roda também, a partir de agora, eu possa fazer parte.” Seu olhar apontava-me certeiro insinuando que eu seria esta ilustre figura, como se sua sombra eu fosse, no que os olhares de todos na mesa imploravam-me para que acertivamente eu o aceitasse. “Não creio” — então eu disse pausadamente e para minha ruína — “que uma figura tão plácida e calma como a vossa possa obter de mim tal recusa, a menos que estivesse louco ou tão amedrontadamente afetado por estes muitos goles que o antecederam em nossa mesa. Sente-se nesta velha cadeira confortadamente, e queira compartilhar de nossas divagações a respeito de alguns mistérios que curiosamente escolheu-nos Este bom D-us nessa noite que ainda está longe de se encerrar, e que é um tema que há muito nos estima. Queira compartilhar de nossas indagações filosóficas e metafísicas sobre o mistério insondável que são a crença do homem sobre o poder de D-us, e do obscuro segredo do Diabo.” Nem bem concluí com este belíssimo dizer, que a mim mesmo e aos outros encheram o ambiente de orgulho, ouvimos que sussurrava, enquanto se sentava, numa pronúncia um tanto estranha e que a todos pareceu uma língua ainda não grafada pela etimologia humana, em breves estalidos, como se numa oração estivesse, leves fricações labiais, e um gesto com a mão direita a circular-nos. “Pois bem!” — completou então enquanto finalmente se ajeitava — “Que pensam vocês sobre tal mistério, e que minúcias deste histórico tema angustiam as vossas almas, e que contribuição julgam-se serem capazes de acrescentar às linhas dos infinitos homens que a tocaram de perto, sem arranharem, creio, sequer, uma pequena parte da mais mágica e inconclusa trajetória universal?” A estas palavras, que derrubaram a minha alma, deixando-me de pé apenas a carcaça que mantinha as minhas surradas roupas, pude perceber que me sentava com um homem de tão alta postura e de tão alto conhecimento, que o mais microscópico de meus pêlos se eriçaram, fazendo-me sentir um calafrio dos mais brutais por mim pressentidos até então. Seu olhar agora se dirigia ao meu, como se a mim obrigasse uma resposta, no que fui interrompido — creio que por um sopro divino — pelo menos ilustre dos presentes, um cadavérico balconista que agora se interpunha entre a presa e a fera, para oferecer o cardápio àquele bem afeiçoado senhor. “O senhor queira me desculpar” — continuou aquela manifestação de Bosch — “tenho aqui uma seleção variada das cachaças de Minas e alguns tira-gostos muito apreciados nesta região. Acaso queira algum destes, é preciso que os escolha agora, pois a cozinheira já está de partida, pois tem uma filha doente, a pobre, e precisa se ausentar mais cedo que o combinado, nas noites de sábado.” “Pois diga a ela que não se preocupe com a filha por hoje” — interpelou-no de imediato o senhor — “pois a garota estará em boas mãos enquanto vossa mãe nos servir com esmero e prazer, a mim e a meus convidados. Diga-a que se reintegre à cozinha e a seu avental, e que Ana Lúcia respira bem em sua cama de cetim azul, e que o seu padrasto não abusará dela esta noite, pois está desacordado numa estação do metrô muito conhecida de meus melhores amigos e que traz a fama de ser uma das mais perigosas desta cidade.” Neste momento do relato, queiram que eu faça uma simples pausa para que nada perca o leitor daquela trágica e impressionante constatação, tanto de minha parte, quanto a de meus nobres e fiéis amigos.

No instante em que ouvímos aquelas palavras, parecíamos intuir que aquele convite não cheirava bem, e que sofreríamos para sempre a escolha de entregar-lhe uma simples cadeira de boteco. Pois ao término daqueles malignos dizeres, pareceu-me — e os olhares de todos não me deixariam mentir — pareceu-me ter ouvido a cozinheira desmaiar por detrás do balcão, a validar, escandalosamente, e para nosso desespero, aquela profecia que lhe saíra há pouco dos lábios, como se numa brincadeira de mal gosto estivesse, como se tudo que havia sido dito fosse a mais pura e letal das verdades.
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O balconista já se prontificara a ajudá-la. E o nobre senhor sorria agora com escárnio e deboche, perguntando-nos onde havíamos parado, e que não nos preocupássemos com os tira-gostos, pois estariam perfeitos, e por conta da casa.

Para Dayse

PARTE II
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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Manifesto do Amor

Infinitamor
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Que fique registrado o manifesto: daqui por diante, e como numa cláusula Pétrea, imutável, (todos) ficam proibidos de comentar qualquer foto sua. Todos! E de olhá-las. É um grito que lanço aos quatro cantos do mundo, como num passe de mágica, como numa Ode ao mais doentio de todos os ciúmes terrenos (numa lógica idílica e dos infernos) que tudo que faça daqui pra frente, me pertença. Porque o meu desejo é que todas as pessoas (infinitas) venham a se esquecer que em algum dia tenham compartilhado de seus movimentos e gestos, criados e vividos por ti. Quero-os, todos! Que fique registrado o seguinte: que de agora em diante (todos!) todos os seus passos existam, mas para mim, e mais ninguém. Que todas as lembranças possíveis e impossíveis, as mais remotas, de sua pessoa, existentes em todos, se apaguem num átimo de segundo, para virem em meu encontro e de uma só vez. Pois você fez o meu coração parecer tão grande que sou mesmo capaz de afirmar que as suporto, todas! De uma só vez em meu peito! Todos os acontecimentos de sua execrável e fabulosa vida: do primeiro beijo à primeira noite de amor; o primeiro apagar de velas; o primeiro sorriso no parque; as primeiras (e últimas) lágrimas, a cada gota, que se esvaiam de todos que as viram e sentiram, e se depositem num único ser, que serei eu. Que daqui por diante todos os seus prazeres e desprazeres, que todos os seus conselhos, seus acertos e desacertos, a sua lógica, e o registro mais cotidiano de sua existência, as do presente, passado e futuro, residente dentro de cada ser, se redimensione ao endereço de minha alma. Que em cada um dos viventes espalhados por todo o globo, tudo, cada imagem plantada em suas memórias, sejam minhas. Minhas! Minhas! E que cada gole de tua boca, todos os seus aromas e cores, que todos os seus desenhos, na pele de felizes e infelizes, se apaguem para compor a minha vida. Que tudo que possa ter tido o seu toque, de agora em diante, a contar pelo sorriso que envia a este monitor (neste exato instante) e que se registra somente na mente do criador, me pertençam. Porque o meu desejo é tê-la de uma forma tão completa e infinita, que de longe pudesse Este bom Deus fazer-me o favor também de esquecê-la, como se nem mesmo sua forma (tão bela) jamais houvesse (entre estrelas) se formado. Que fique registrado o manifesto: que todos possam sair às ruas (nesta manhã de 22 de dezembro) sem jamais terem imaginado que em algum dia você tenha existido. Porque o meu desejo é roubá-la da memória de todos, do coração de todos, da vida de todos os afortunados que a conheceram, e dos que ainda hão de conhecê-la, e de sugá-la, com a mais infinita força gravitacional, como só a um Deus possa ser concebível sugá-la.
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segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Dilúvio de Cassiane Baracho


................................................................................................................RESENHA [R]

Talvez disposto em páginas impressas, O Dilúvio, de Cassiane Baracho, obtivesse o mérito devido. Talvez, e também, pós-escritos, como os manuscritos de Kafka; estes (a qual foram publicados um dia contra a própria vontade do autor, desejoso que era de vê-los, acreditem, queimados) obtiveram-no. O Dilúvio possui este mérito. A razão é clara. Narra com desenvoltura o drama de candidatos ao exame vestibular. O tema, particularmente pertinente, impõe ao leitor congênere pertinácia. Cassiane Baracho faz culto e inferno num mesmo instante. Demonstra expositivamente o lado inquisitório de cansativas aulas, como também o assombro (moderno) sobre este objeto infinitesimal que é o livro.

Observa Stevenson que: “há uma virtude sem a qual todas as demais são inúteis, essa virtude é o encanto”. Lembrar-me-ia certamente e neste exato momento, de inumeráveis contos os mais complexos, inumeravelmente limados, abominavelmente calculados, exorbitantes em sua máxima literatura, não me recordaria, porém, um tão encantador. A impressão que se tem é a de que, para os dezessete anos da autora, romper com tais justificativas acaba por nos querer provar (a quem lê) que tudo não passou de uma imensa brincadeira.

E um pormenor elucidativo: toda temática do conto reflete a aflição da autora. Seu conto quer nos dizer mais sobre ela mesma e deixar o resto do mundo um pouco mais afastado. A Comunicação Social parece convidá-la a uma vaga. O Jornalismo tende a progredir após Cassiane Baracho.

domingo, 23 de novembro de 2008

Funes, o Memorioso de Jorge Luís Borges


.......................................................................RESENHA CRÍTICA [RC]

As mais deslumbrantes e lúdicas pessoas de meu modesto círculo de convívio são afoitas quanto aos contos e ao nome deste contemporâneo escritor sul-americano (argentino) Jorge Luís Borges. Se não me falhe a lembrança, Jorge Luís Borges nascera em último ano do séc XIX. Descendente de pais os quais lutaram pela independência Argentina e participaram das guerras civis do Rio Prata, parece ter herdado daí a paixão pelos pampas gaúchos, paixão que o acompanharia ao longo de toda a sua vida literária. Aos seis anos declara ao pai que quer ser escritor; isso em 1905, se me bem lembro.

Seus contos (Borges primava pelo escrever breve), estão carregados à moda Kafquiana, de sonhos, quiçá pesadelos. Estes (permeados pela intelectualidade quase classicista, traduzida em uma escrita mágica), faz-nos pensar como Ítalo Calvino em um de seus últimos ensaios: “nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura como extração da raiz quadrada de si mesma. Uma literatura potencial.”1 O comentário não é infundado. Em Funes, o Memorioso; Borges, para nos dizer de seu super-protagonista, infunde-nos um mar de filosofias e teologias de todos os tempos e de modos os mais variáveis possíveis. Seu conto quer que entremos em contato com uma infinidade de outras obras, como por exemplo: “Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis História.” ou “minha valise incluía o De Viris Illustribus de Lhomond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César.” ou mesmo “Locke, no séc XVII, postulou (e reprovou) um idioma impossível no qual...”2 e por aí vai a justificar-nos o conceito justíssimo de Calvino.

Não é querer demais lembrar aqui o dito de todo já conhecido: se uma galinha é um artifício que um ovo usa para produzir outro ovo, um livro é um artifício que um escritor usa para comunicar-se com outro escritor, logo, não é preciso que autores se conheçam, logo, o conto borgesiano estabelece este perfeito contato entre livros, logo, Borges e intensidade são símiles.

Certa vez uma amiga afirmou ser este conto uma necessidade constante em sua vida. Envolvida que é em diversas atividades e leituras, dizia ela do desejo de retornar sempre ao conto de tempos em tempos; do modo como se realimentava de sua substância, embora impalpável; do modo como essa trama passou a ser para ela uma espécie de conto universo; ou como diria Flaubert: “haverá um livro (ainda não escrito) que poderá, um dia, explicar-nos toda a realidade.” Creio fazer juz, embora incorrendo (e espero ser perdoado) em demasiado elogio se o incluo dentre os possíveis pleiteados a essa façanha.

E uma última questão. Em sua última frase: “Irineu Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.” É provável que um de seus últimos pensamentos dissesse respeito a Deus.

1 Calvino, Ítalo. Porque Ler os Clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
2 Borges, Jorge Luís. Ficções. São Paulo, Editora Globo, 1956.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O Infortúnio


Arrepender-se de um ato é alterar o passado.
Oscar Wilde: De Profundis
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Na manhã de trinta e um de março de um ano qualquer, ano por muitos (saibamos) jamais esquecido, numa lúgubre palhoça à beira da estrada de São Serraro, Baixa Santana do Sul, um homem, cujas mãos ainda violadas mal se mexiam pelo incessante e exaustivo dia anterior, sonhou encontrar-se em um extenso milharal. Sonhou atear fogo em poucas de suas pequenas porções contornando a si próprio. Do céu a ferrugem se escorria, impondo-o, como jamais houvera imposto, sua dor. O fogo se alastrava, merecendo-o. Ao seu redor, com todo o tremor possível, por todos os lados o medo sem volta. Não havia tempo; não haveria mais tempo; qualquer recuo por mais instintivo que o fosse só estaria a condená-lo ainda mais depressa. Seu pavor solitário convertera-se numa leoa contendo mil dentes, agora, em um gigantesco círculo, pensou: “Meus próximos instantes serão infinitos”. Sentiu secar-lhe a garganta quando espremeu-no, impiedosamente, a incandescente língua de ferro. Não pôde pensar em mais nada. Em chamas até os últimos e breves clarões da memória se contorciam. Remexia-se como a che-gada da impostergável hora de um cisne. Debatia-se como quem só agora pudesse compreender o vazio, visto sermos meros raciocínios ambulantes. Agitou corpo e membros sem esperança. Congelou-se em meio ao turbilhão vermelho que o ignorava; sem alma, aniquilado. Em sua inconformada face, um líqüido (talvez lágrimas) entranhava-se por entre calcinados cristais de terra. Teria sido encontrado após quatro longas noites de inverno. Nessa altura, despertou.

Em fins do século XIX, próximo ao Riacho dos Massetes, Domingues, obstinado, mescla à água fervida muitas medidas de um mate que em tempos remotos pertencera aos fugitivos negros, e que agora serve para acalmar aos brancos e pardos. Sua verdadeira identidade é para todos daquela região um segredo, bem como sua origem. Mas ninguém ignora que já há muitos dias, aos entardeceres; com um olhar empoeirado pelo tempo a tragar o seu cimarrón, observa atenciosamente toda porção sul da primitiva paisagem.

Tarefa honrosa a de um espectador que se vê obrigado a crer na impossibilidade, sobretudo ao que de antemão possa (aos olhos) parecer-lhe impossível. Aos que agora podem distinguir entre esses dois homens, quero contar o destino de ambos, e intercalá-los até o momento de suas sortes, algo que ainda hei de inteirar-lhes do motivo de se encontrarem juntos nos confins de um certo subúrbio de um peremptório país. O caso se passa em dias de Março de 1896. O relato sugere destreza, mas duvido não poder contá-lo rapidamente.

Sendo assim, parto de um seguinte documento oficial da época:

“A 15 de Outubro do anno findo, em obediência à ordem já referida, promptamente satisfiz a requizição, feita pelo Dr. Alípio Mello, de uma força de ceem praças da guarnição para ir bater aos 16 dias de Março do anno vindouro fanáticos de um arraial, asseverando-me que, para tal fim, era aquelle número mais que sufficiente.”

Confiado no inteiro conhecimento da causa,
Tenente Domingues Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria

Anota Spinoza em uma de suas mais belas obras que Deus não odeia ninguém, mas que também não ama. O homem cujas mãos doloridas sonha o que deverá ser seu possível futuro acredita na hipótese que confirma a bondade divina. O segundo, Domingues, revive-O a cada pronúncia de Seu sagrado nome com a mais profunda indiferença. Seu indigente militarismo fora crucial para tal escolha. Uma descarga no peito revelou-lhe a malícia aos vinte; uma morte por que fora responsável tratou de agravar-lhe ainda mais os nervos. Aos vinte e nove anos torna-se Tenente; tendo, porém, agora, dezenas dos mais sanguinários inimigos às costas. Nunca mais atingira-o sequer uma bala; jamais o atingira, até então, uma mulher. Erra de prostíbulos às batalhas; das batalhas aos bares; dos bares aos prostíbulos. De uma correspondência de Dr. Alípio Mello, comandante da capital, recebe ordens prontamente. Passados dias responde-lhe de sua benevolência para com a nobre causa, aguardando somente a confirmação e a data da investida. Dias mais; e a confirmação. Algumas semanas lhe são suficientes para o acampar e margear o arraial com seus mais de cem homens. O sangue, precedido pela iminente guerra, dá à Domingues um ar imperial. Um escuro rio que pende lentamente da noite a poucos metros do vasto e agitado campo de batalha convida-o silenciosamente. Domingues dá o dorso às aguas; mergulha solitário. Ao boiar enxerga no cimo de uma negra serra aquilo que jamais o sensibilizara; o brilhante universo. Chora; refaz-se rapidamente enquanto o surpreende o inexplicável sentimento; enxuga-se; repousa. Neste ponto do relato a figura de Domingues se dilui. Ao amanhecer desperta-o o irrefreável vozerio dos soldados. “Tenente, uma mulher o procura. É do arraial.” “Que entre rápido a rapariga, pois não tenho tempo”. Traga uma bebida amarga quando (sem que ele a veja) toca-lhe a mão uma irresistível mulher. Domingues, ainda anuveado pela noite anterior, redimensiona o olhar ao olhar de quem o toca. A inexplicável noite torna-se explicável. Acreditem; ele a ama imediatamente.

Inicia-se então para Domingues os seus mais lúcidos dias. A lucidez de que fala, confidenciada em uma carta a um de seus amigos e superiores da capital, é um inédito amor de uma guapa de escuros olhos e fronte felina. À romântica declaração anexa um novo plano para a invasão do arraial; quer entrar pelo flanco do norte de modo a surpreender o voraz inimigo, e que para tal estratégia aguardaria ordens de um possível adiamento. Duas semanas mais lhe outorgam. Duas semanas mais lhe são necessárias para arrancar numa noite (a dentes) a roupa e a honra daquela reluzente mulher.

Na mesma noite Domingues a promete poupar da morte um morador do arraial, um único ente que, segundo ela, é seu irmão mais velho, vítima das más influências de um bando de sertanejos desabençoados. Aos murmúrios de uma agitada tropa desperta; revolve meia cabana sem encontrá-la. À outra metade encontra-a de pé entre o catre e a lona, o que o faz pensar que o que sente é capaz de comportar uma tropa inteira a marchar em seu peito. Ela lhe ajeita a farda docemente como ainda não o fizera; irradia contiguamente em seus olhos, embora Domingues não o saiba, a antiguidade dos tapetes persas e o futuro de um filho. Domingues se despede; com o mesmo ar imperial recebe o caloroso beijo e sai à planície. Nessa paixão não tarda em chegar o dia da batalha.

Perfilados os soldados já não resta tanto o que fazer, a não ser avançar. O que hei de contar (o que esperar de um simples santanense) atraiu a fama para este pequeno subúrbio do sul por conter uma história que a todos juram ser fiéis. Portanto, sigo ao desfecho sem delongas.

Aos trinta dias de março Domingues aguarda a queda da tarde por conter em sua cor a glória do sangue e por preceder à noite, este veículo manifesto dos pesadelos; a mando de Domingues é dado a somente um homem sobreviver. Suas características são elucidadas aos homens pelo próprio Tenente horas a pouco do total aniquilamento. Invade pelo norte com quarenta cavalos surpreendendo meia dúzia de jagunços, enquanto o restante, vindos do sul, esmagam pequenos barretes endemoniados conferindo ao batalhão o menor número de baixas de toda a sua história. Homens, mulheres, crianças e animais são dizimados de suas almas como a pólvora acesa. Reúnem-se quase uma centena de cavalos em meio aos destroços; um homem ensanguentado e amarrado ao centro parece incontrolável. Domingues lhe mira de cima com os olhos, arranca-lhe com a espada a corda ao punho e diz:

— Saiba ter visto nesta cinza tarde o poder de vosso senhor a quem devia tê-lo respeito, Dr. Alípio Mello; e também à compaixão de sua querida irmã, verdadeira salvação de vossa desprezível vida; pois não fosse o amor que trazes por mim e do meu a ela jamais estaria ouvindo o vento que agora ressoa por seus ouvidos. Vai-te embora no mundo, e não me pises mais nestas amaldiçoadas terras que um dia foram férteis e que agora jazem apenas cadáveres.

Atroz destino. Agora só; entre os escombros de sua terra e de sua execrada gente, um homem duplamente humilhado, esgotado, a adormecer, mal consegue mover-se. Na imensa planície o rastro da tropa que já se distanciara. Dentro de si o ressoar da gélida brisa, da escuridão e o sentimento de traição de sua amada esposa. Enviara-a a brutos mandos ao acampamento para trazer-lhe qualquer notícia que lhe pudesse salvar a nobre causa...

Na manhã de trinta e um de março de 1896, ano por muitos (saibamos) jamais esquecido, à beira da estrada de São Serraro, antiga Santana do Sul, um homem, cujas mãos ainda violadas mal se mexem pelo incessante e exaustivo dia anterior, encontra-se em um extenso milharal...

Para Jorge Luis Borges



EPÍLOGO

O primeiro parágrafo deste conto me foi revelado em sonho a pelo menos dois anos num mês de junho ou julho. Fruto de uma fatal coincidência ou mera ação do inconsciente pareço encontrar semelhanças, ou mesmo, estreita relação entre os fatos a mim recentemente ocorridos e o premonitório parágrafo. Coincidências ou não, o fato é que após esses anos entrego o restante do conto não com o sentido de missão cumprida (terminá-lo foi para mim uma urgência uma vez que sentia-o perdendo de vista e propósito) mas resignado com o seu resultado.


O prazer de elaborar uma narrativa consiste em compartilhar capacidades que só subsistem no ato da leitura. Sem o leitor penso jamais ser capaz de qualquer execução, dado que a imaginação exija sempre o contato com uma outra, cabendo ao escritor o simples papel de escrever o minímo possível e deixar com que lhe preencham o resto.

Certa vez afirmou-me Davidson Soares de sua estranha, mas notória, resistência aos contos cíclicos. Não admitia que lhe fossem consideradas quaisquer tentativas a esse respeito. Dizia que mais da metade das obras produzidas no último século pendiam para este desconcerto, ou melhor, este insulto à criatividade e que terminar um conto unindo-o ao começo é o mesmo que impor a todos os seres vivos que mordam a própria cauda e girem em torno de si mesmos eternamente (estou certo de que se referia à incapacidade inventiva). Creio refutá-lo neste conto por acrescentar ao ato cíclico um pormenor um pouco mais acentuado que os outros.

Cada linha escrita neste conto quis percorrer e emocionar o pensamento alheio no instante mesmo em que foi redigida. Portanto, espero sejas conivente com o que penso a teu respeito leitor. E ainda: não me condenes se em algum momento deixei escapar minha incapacidade de elaboração. Em todo caso, que ao menos essa elaboração (que também é a melhor de mim) não te seja tosca.

Contagem, 29 de março de 2006

domingo, 14 de setembro de 2008

Entre Diálogos



“Eu durante minha vida toda busquei pessoas que falassem assim pra mim, e adoro ouvir críticas destrutivas. Quem não critica e não ouve críticas é um fraco. É o tipo de pessoa que tem medo. Eu não tenho medo de ser odiada, falada, quem tem medo disso é gente covarde.”
.........................................................................................................................Anônimo


INTRODUÇÃO

Antes de mais nada (é tão importante que se fale disso neste início) este ensaio é um brinquedo Leitor. Um de meus brinquedos intelectuais prediletos, diga-se. Mas um sério brinquedo também e perdoe-me o paradoxo. Pois se bem observar, verá (com o magnífico olhar que conheço) um brinquedo que pretenda (bem a meu modo) compreender o mistério de que são formados os diálogos, uma vez que o recheio de nossas atitudes sejam as conversas, sem, no entanto, crer que chegarei a resposta definitiva, o que está longe de qualquer filósofo pretendê-lo, mas chegar a uma resposta, a uma verdade provisória, com o gostinho de nosso tempo, e que sirva para nossas vidas. O que não me diminui, ao contrário, torna-me, e a este texto, isentos de um julgamento pouco sublime. Um brinquedo que, como verá, manejo (ou irei manejar daqui por diante) também com muita honestidade, sabendo que seja impossível circular a verdade que não por meio dela, mas com muito prazer também, pois não posso me imaginar (e isso aprendi com um mestre) a escrever algo cujo fim não seja o de obter a felicidade. Que a obtenhamos juntos, portanto.

Quando nestas linhas encontrar os traços de minha personalidade, a enxergar-me inteiramente nu e por completo, visto que não possa (não há escritor que possa) esconder-me em meus preconceitos e erros; quando encontrar-me naquela prisão comum de seus raciocínios, nas inevitáveis grades a que esbarram todos os escritos (as grades do seu julgamento), debruçado que estará sobre meu texto e consequentemente sobre o que penso; quando eu, ao fim de tudo, estiver em suas mãos, como alguém que no fim da vida já não possa, ao menos, defender-se das acusações feitas contra si mesmo, espero encontrá-lo do outro lado com aquela resistência natural (e um irônico sorriso) próprio dos mais capazes, mas saudosamente orgulhoso por isso acontecer; ou orgulhoso pela sutil constatação de minha ingenuidade, que vê-se por meio da simples variação de vinte e três letras do alfabeto, supor estar entendendo alguma coisa.

Porque (se ler-me com a atenção devida) entenderá que pouco me interessa saber se gostou do que escrevi, mas se gostou do que leu, e nisso há um brusca diferença. Que nos divirtamos, dessa forma, Leitor, antes de qualquer coisa, pois, o que nos impedirá de rindo dizer coisas sérias, como bem disse Horácio. Não será demorada a constatação de que este não é um brinquedo comum e de fácil e rápida assimilação. Pelo contrário, um brinquedo daqueles que (quando no natal) começam por ser observados por todas as crianças de um modo lento e duvidoso, respeitando primeiro a aparência do embrulho (um tanto ridículo e de mau gosto) mas que aos poucos venha a se converter numa bela diversão, própria das grandes surpresas, tão próprio dos grandes presentes.

Como o que está em questão acaba por ser a matéria de que somos formados, ou seja, a mais pura vontade de falar, assim, de existirmos, e claro, infelizmente convertida, como bem sabemos convertê-la, às vezes, em ríspidos diálogos, verá você que, para explicar-lhe em bom tom o que de minha vida aprendi até os meus bem poucos trinta anos, preferi em minhas conversas sempre o caminho da leveza, tão comum aos mais sábios — e não o caminho do peso das considerações, tão própria dos que se propõem intimidar, e não convencer. Pois acredito que raramente triunfamos do mal que atacamos de frente; devendo, assim, ao dialogar com um outro ser, nem diminuí-lo nem extinguí-lo, mas, brincando, desviá-lo e transformá-lo, e nisso Montaigne acertava.

E se a você este brinquedo, ao final, se mostrar um tanto mentiroso, como algo sem valor ou de muito pouca utilidade, saiba que, ao menos, como todo sincero presente, este lhe quer somente agradar (porque lhe quer ferir a razão) ou servir-lhe de algo, e disso saio com a consciência tranquila. Pois o que lerá nessas linhas, se ainda pretende avançá-las, são instantes de minha mais profunda sinceridade, acrescidas, é claro, de longos anos de conversação, e mais algumas centenas de milhares de debruçes em minha janela. E mais: está muito longe de mim, querer, me divertindo convencer alguém de minhas pobres idéias, enquanto sei que essas somente a mim (e para minha sobrevivência) possam servir para alguma coisa. Mas penso que me caiba, no entanto, o direito de compartilhá-las, visto que a isso se prestou tão bem a escrita por todos estes séculos, sem a qual não teria por tanto tempo sobrevivido.

Nesta introdução, se começo este texto por aqui, como numa brincadeira de criança, a despertar a sua memória para o motivo de tudo isso, é por apenas querer dizê-lo, e sem mais demora, e da maneira que justifique o próprio tema, que o texto quer que entendamos apenas os processos pelos quais se dá o fenômeno do DIÁLOGO, coisa tão importante em nossa época. E o que o torna mais importante: nestes tempos em que ninguém (ou muito poucos) conseguem sequer estabelecê-lo de um modo mais lucrativo, mais proveitoso, com mais método e menos arrogância e vaidade. Pois nada, Leitor, nada me corrói mais o estômago, nada me dói tanto que enxergar em meus amigos, naqueles que elegi para servirem-me de opiniões, estas duas últimas palavras. Arrogância e vaidade. Ainda ontem não ouvi dizer que a obstinação e a convicção exageradas são a prova mais evidente da estupidez? E não são sempre os menos capazes que, ao travarem uma conversa, olham os outros de cima e voltam da luta cheios de orgulho e disposição? E por não perceberem as laranjas que lhe caem do cesto, é que andam por aí a derrubá-las cada vez mais, sem que ouçam os risos? Portanto, se me-é permitido fazê-lo, confiarei em duas autoridades para este feito: em primeiro, em mim, que mesmo brincando possa perceber-me fazendo algo de útil, ao traçar o resultado de minhas descobertas. Na verdade ao traçar o resultado de meu cuidado por você Leitor. Em segundo, em toda a Filosofia, ou que melhor explique, em toda a filosofia por mim lida, que esteve mesmo com a razão por muitos anos e há séculos atrás.

E encerrando, escrever-lhe que ao narrar as minhas experiências hoje tão fúteis, duvidando que as possam aproveitar o discernimento alheio, ou que a opinião dos “entendidos” possa com isso, ao menos, arranhar-se, valho-me do orgulho de que, de algum jeito, ao menos, um sairá lucrando ao fim de tudo isso, que serei eu. Pois sei por experiência própria (por mais que tentemos aconselhar) que a tolice nunca se deu com os conselhos. Que ela, na verdade, é como a água e o óleo. E que se suportou esta introdução até aqui, haja talvez alguma esperança de que não pertença a esta leva dos tolos, (na verdade estou certo de que não) e que a arrogância que às vezes vejo perturbar a fala alheia possa ser apenas um engano de minha parte, um deslize também de meus julgamentos, e que sendo verdade o meu erro, (se estou mesmo enganado) que possamos rir destas linhas (juntos) ao fim deste ensaio, o que me deixaria muito feliz, pois dentre tantas qualidades existentes em você Leitor (e prefiro que as lembre num segundo momento) acabo por querer afirmar que talvez todo este meu trabalho almeje apenas o poder usufruir de tudo isso, acertando o nosso modo de dialogar com os outros, para que o brilho de vossa alma se possa chegar completa até mim, o que não me impeça de dizer que o que faço é dar umas esfregadelas neste globo de modo a promover-lhe a transparência do vidro, para que eu o enxergue de verdade, que o seu brilho sejas meu, e por inteiro, e que serias bem esperto se compreendesse que o que quero, na verdade, é chegar-me tão perto de ti, que de longe pudessem dizer (visto nossa harmonia) que somos apenas uma pessoa, que na verdade é um outro modo de dizê-lo que o amo. E para finalizar, recorrer a um poeta muito distante no tempo, que dizia que fazer o que seja é inútil. E que não fazer nada é inútil. Mas que entre fazer e não fazer, mais vale o inútil do fazer. Mas não, fazer para esquecer que é inútil: nunca o esquecer. Mas fazer o inútil sabendo que é inútil, e bem sabendo que é inútil e que seu sentido não será sequer pressentido, fazer: porque ele é mais difícil do que não fazer. E dificilmente se poderá dizer, Leitor, com mais desdém, ou então dizer mais direto a você, ou a mim mesmo, que o feito o foi: para ninguém.


DA ARTE DE DIALOGAR

Em breve...
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